Pessoal e intransferível
Esta semana, minha filha apareceu com a famosa (famosa só para quem teve filho pequeno nos últimos anos, já que pais mais antigos conhecem essa doença por outros nomes, pelo que pude constatar) síndrome mão-pé-boca. Eu passei o final de semana anterior tratando alergia, dor de dente nascendo, picada de pernilongo, mas era tudo uma coisa só: a tal da síndrome. Fiquei sem entender por que ela não estava querendo comer, por que as noites estavam sendo piores que o normal, e era simples. Bastava ter pesquisado no Google que eu teria percebido do que se tratava. Não percebi.
Eu não sou médica, nem sou da área da saúde, nada disso. Ainda assim, bateu aquela culpa por não ter interpretado os sintomas, por não ter compreendido de pronto as necessidades da minha filha. No fundo, eu sei que mesmo se eu fosse médica, não teria feito diferença.
Confesso que detesto aquele ditado que roda por aí que diz que “nasce uma mãe, nasce uma culpa”. Não porque não me sinta culpada vez ou outra desde que me entendo por mãe, mas porque todas as vezes em que ela bate por aqui, tento racionalizar e repetir para mim mesma que eu não tenho que me sentir culpada por nada. Sou uma ótima mãe (e para mim, que sempre tive muito apego à modéstia a ponto de responder a elogios com frases como “Essa roupa? Comprei em um desapego por 50 reais” ou “Você está falando isso porque não viu como a minha barriga está mole” ou “Não estou bonita não, olha minhas olheiras”, é extremamente incômodo escrever algo assim com tanta convicção. Quem eu penso que sou para dizer que sou ótima mãe? Eu já não deixei minha filha cair da cama quando ela tinha menos de cinco meses? Eu não dei chupeta quando ela tinha menos de três meses? Ela já não provou um milho de latinha porque meu marido me perguntou que milho era aquele no congelador, eu disse que não sabia, ele me perguntou se podia dar e eu disse que sim, pensando que alguém tinha cozinhado milho para ela, quando não passava de um milho industrializado?), e nada do que escrevi entre parênteses é capaz de mudar isso. Ser uma ótima mãe não significa ser uma mãe que não erra, até porque isso nem existe.
Nesta segunda-feira, quando constatado que se tratava da síndrome mão-pé-boca, contudo, a tal da culpa bateu forte. Eu tinha como evitar? Só se eu impedisse a Maria Clara de brincar com outras crianças ou de saborear todos os brinquedos que ela vê pela frente, o que vai totalmente contra os meus princípios enquanto mãe. Eu sou obrigada a identificar toda doença de bebê, mesmo sendo mãe de primeira viagem? Claro que não, nem se eu fosse mãe de outras viagens eu seria. Nem se eu fosse médica. Então por qual motivo eu me senti tão mal?
Parei para pensar melhor sobre o que me doía tanto. Não era culpa. Era solidão. Era desamparo. Ontem mesmo eu falei com uma amiga e ela me contou uma história muito significativa para ilustrar a solidão da maternidade. Não importa quantas pessoas você tenha por perto. A maternidade, vez ou outra, é solitária. Não tem nada mais solitário que sentir um amor sem igual. Um amor que ninguém mais sente. E aqui meu marido provavelmente diria que ele sente, sim. Não duvido do amor dele por ela, nem do tamanho desse amor, mas preciso pontuar que não é igual ao meu. Não tenho uma régua de amor, nem digo que o meu é maior que o dele. Só tenho a certeza de que o amor que eu tenho pela minha filha é personalíssimo. Intransferível. Único.
E é isso que dói. A gente perde a autonomia até sobre as nossas dores. Elas passam a depender intrinsecamente de outro ser humano. Nunca mais existirá felicidade completa se a minha filha não estiver bem. Ter consciência de algo dessa grandeza é doloroso. É solitário.
É desamparador.
Escrevo essa palavra agora e o Word me informa que ela não existe. Se não existe, eu invento: desamparadora é a dor desamparada. É exatamente o que eu senti. Não existe amparo para doença de filho. Eu faço uma reflexão destas a partir de um simples mão-pé-boca. Não posso deixar de pensar nas pessoas que perderam seus filhos. É dor impossível de ser amparada. Porque dor que vem de amor único é única. É ferida aberta para sempre, sem nenhuma perspectiva de se achar uma tampa. Dizem por aí que quando uma mãe perde seu filho, todas perdem um pouco. Sim, mas não. Perda igual à dela, não existe. E não estou vinculando esse sentimento ao gênero feminino, à filiação biológica, a nada disso. Vinculo à maternidade. Para um amor diferente e tão singular, a dor é também única.
E é aí que percebo que o meu problema (o problema da minha filha, que sempre será tão intrinsecamente meu) tem uma solução. E aqui eu cito a última frase que sublinhei em um livro (“Cabeça de Santo”, da Socorro Accioli): “o tempo de sonhar é em cima da terra. Foi a morte que me ensinou”. Pois é, enquanto a vida acontecer, tem solução. E no meu caso, é só um mão-pé-boca que incomoda muito a minha filha. E aí me vem uma frase de quem provavelmente tem por mim um amor único, personalíssimo, intransferível: minha mãe. É uma frase simples, tão simples quando sábia, que só poderia ter saído da boca de uma mãe, da minha mãe. “Vamos enfrentar”. E é o que eu digo para a minha menina. “Vamos enfrentar, filha”. E já me sinto menos sozinha só por dizer essa frase. Porque o amor que tenho pela minha filha pode até ser singular como ele é, mas sozinha eu não estou. Tenho um amor pessoal, único e intransferível para chamar de meu: o da minha mãe. E aqui eu me lembro dos que já não têm a mãe neste plano e sei que eles continuam amparados ainda assim. Porque tão singular como amor de mãe é, ele não depende nem da vida da mãe, nem da vida do filho. Amor de mãe paira por aí, além de qualquer existência humana. Se tem uma coisa que não morre, essa coisa é amor de mãe.